Um dos movimentos mais interessantes de House of Cards é a evolução da dinâmica de protagonismo na série. Como você já deve ter lido por aqui, muito se discute sobre o crescimento de Claire Underwood, tornando-se vital à história no mesmo nível de Frank. No fim de semana do Dia dos Namorados, nada melhor que percorrer a construção do casal mais enigmático da Netflix.

Nessa série, como em qualquer história, podemos perceber o protagonismo envolvido através dos conceitos e elementos trazidos nos textos anteriores da coluna. Por mais que cada personagem tenha seu próprio arco (ou caminho) de desenvolvimento, a história sempre converge ao arco do protagonismo. É pela figura central e seu entorno que a história avança, muda de direções bruscamente e alcança seu fim.

É visível o destaque do personagem de Kevin Spacey na primeira e segunda temporadas. O incidente incitante de cada uma delas gira à sua volta, bem como os pontos de virada de cada Ato e os clímax. Mais à frente destrincharemos as temporadas completas, como fizemos com o episódio piloto, mas vale observarmos esses inícios e fins.

A história começa de fato no momento em que Frank se reúne com Linda e a promessa do cargo de Secretário de Estado é quebrada. Como já tratamos, é o momento de descompasso, de forte desarranjo na vida do protagonista. Nesse instante ele não tem mais direção a seguir, não conhece o próximo passo – tudo precisa ser revisto. A primeira temporada segue desse evento até seu clímax, quando Francis alcança o cargo de Vice-Presidente. Claire fora extremamente enigmática (e de certa forma continua sendo) até aqui. Pouco conhecemos dela, ainda que seu impacto fosse notável desde o primeiro diálogo.

Atenção: se você ainda não assistiu à segunda temporada, o trecho a seguir pode conter spoilers sobre o enredo.

A segunda temporada se inicia do ponto onde a primeira parou, mas de certa forma estamos na estabilidade da chegada de Frank à vice-presidência durante todo o primeiro episódio (Episódio 14). Sabemos que é um momento de transição, mas há um equilíbrio em cena. Nos comentários do texto “O Ponto de Partida“, a leitora Cristine aceitou o desafio de entender o incidente incitante da segunda temporada.

Em uma ótima conversa, concluímos que o evento que gera o desequilíbrio necessário para a segunda temporada ter sua própria história é o assassinato de Zoe Barnes:

“Frank planejou a morte de Zoe um pouco antes, mas ele mantém a perspectiva de continuar trabalhando com ela até que o encontro aconteça. Quando Zoe mostra que não arrefecerá em sua investigação, durante a cena, é quando Frank decide – sem volta – matar Zoe. Essa cena muda a configuração da corrida de Frank rumo a seus objetivos maiores. Acaba com o equilíbrio da investigação contra ele. Basicamente, ela transforma a continuação da 1ª temporada em uma nova temporada de fato.”

Mais uma vez, a história avança conforme eventos que ocorrem centrados no personagem de Kevin Spacey, padrão que se mantém até o fim daquele ano, com a chegada de Frank à presidência como o clímax. Todavia, ainda que não fosse o incidente incitante, Cristine apontou na conversa uma importante mudança no foco dado à Claire na segunda temporada:

“[…]eu acho que é a entrevista em que ela diz que fez um aborto por ter sido estuprada na faculdade. Mesmo sendo uma “mentira” armada, a carga emocional daquela cena é tão impressionante, que você explode por dentro[…]”

Enquanto no primeiro ciclo de episódios vemos uma esposa com planos paralelos aos do marido, com poucos pontos de convergência, os capítulos 14 à 26 trazem maior desenvolvimento da personagem, mais acesso a seu passado, e uma convergência total entre seus planos e os de Frank. Todas as suas ações têm impacto na trama central. Porém, ela ainda não é protagonista, afinal, esses impactos são sobre o caminho do marido mais do que sobre seu próprio caminho.

Os dois primeiros anos de House of Cards poderiam ser os únicos. A história terminaria de forma triunfal para Frank, com seu plano completo, garantindo vingança e vendo sua ambição ser bem sucedida. Felizmente, essa não é toda a história que os produtores queriam nos contar.

A terceira temporada – para muitas pessoas próximas, é a mais fraca da série até agora – representa uma transição na história. Essa sensação de que ela não acompanha o nível das outras, para alguns, pode vir da perda de senso de direção que temos como espectadores, por Frank precisar de novos objetivos. Essa transição, no entanto, abre espaço para Claire.

Atenção: se você ainda não assistiu à terceira temporada, o trecho a seguir pode conter spoilers sobre o enredo.

A personagem de Robin Wright cresceu do primeiro para o segundo ano, e cresce ainda mais na terceira temporada. Uma forma de averiguarmos isso é o incidente incitante. O Episódio 27 (início da temporada de 2015) passa metade nos mostrando a recuperação de Doug. Após a revelação de que ele não está morto, passamos 27 minutos acompanhando sua agrura. Essa escolha de Beau Willimon (roteirista do episódio) cumpre dois propósitos, a despeito do gosto de alguns:

  • Aprofundar o personagem de Michael Kelly.
  • Fazer a passagem de tempo desejada entre a segunda e a terceira temporadas (aproximadamente seis meses) sem uma frase “Six Months Later” na tela.

Apesar de ser um ótimo artifício para a passagem de tempo, é impossível não sentir que os primeiros meses da administração Francis Underwood serviram de nada. Somos apenas contextualizados, e aos poucos o episódio mostra que o objetivo de Frank está nas eleições presidenciais de 2016, mas sem revelar qualquer mudança no caminho.

É com Claire que alguma mudança chega. A personagem de Robin Wright dá o ultimato ao marido o acordando de madrugada. Quer se tornar embaixadora da ONU, ter seu próprio caminho e futuro. Agora ela é também uma jogadora, não apenas um pilar do jogo de Frank. O fato de Claire estar diretamente envolvida no evento que muda a direção da temporada mostra o aumento de sua relevância – infelizmente, é um evento mais fraco do que foi a reunião de Frank com Linda em 2013, ou o assassinato de Zoe em 2014, o que colabora para uma temporada de início menos arrebatador.

Ao longo dos doze episódios seguintes, a profundidade de nossa relação com Claire cresce, até chegarmos a um clímax mais uma vez compartilhado, quando ela deixa Frank. A partir desse bloco da história, Claire se tornou chave para os eventos definitivos da história, digna de uma coprotagonista. Apenas um elemento mantinha Claire em grau abaixo de Frank – a Quarta Parede.

Em 2016, começamos a temporada do ponto onde paramos a última, com Claire deixando Frank. O clímax de uma se torna o incidente incitante da outra, colocando Claire no centro como era previsto. Então Frank é alvo de um atentado, passando por um hiato que coloca Claire atrás do volante dos acontecimentos; mas, mais do que isso, é um período da série onde não há quebra da Quarta Parede, devido ao coma de Frank. Durante esse tempo, os contadores da história estão colocando Claire no mesmo patamar do marido.

Esse método funciona até que, como você já deve ter captado, chegamos ao instante em que não há mais divisórias no casal. O protagonismo da história deixa de ser de Frank, e oficialmente se torna de ambos, da unidade, no clímax da quarta temporada, quando, junto ao personagem de Kevin Spacey, Claire quebra a Quarta Parede pela primeira vez.

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